Chega - Acordar nunca foi tão desagradável.
Mentir a nós próprios já não dá.
O partido Chega existe, cresce e ocupa uma espaço que ninguém quis ocupar.
Há quem vote por convicção, por protesto, e quem esteja ali no meio: a pensar fazê-lo, mas com a sensação de que ainda não pode dizer isso em voz alta.
Escrevo para este último grupo.
Se nunca ponderaste votar no Chega, este texto não é para ti. A sério. Porque ao debate político em Portugal juntaram-se duas equipas: os que vêem o Chega como a solução, e os que o vêem como um incêndio.
Mas há um terceiro grupo, silencioso, mais interessante, e muito maior do que se admite: os que dizem "nunca" em público, mas à noite fazem contas de cabeça.
Goste-se ou não, tornou-se uma variável que já não dá para ignorar na equação política portuguesa. Vou mais longe, na equação das nossas vidas. Sim, porque a política é já por si, um chavão que cria anticorpos a muita gente. Alguém que quebre esta barreira psicológica e que centre as atenções na importância de decisões colectivas, ao invés de agendas classicamente partidárias e duma classe social distante e longínqua, tem o potencial de resgatar muita gente - que outrora barravam e filtravam automaticamente - do alheio individual.
E isto não é passageiro, não é folclore partidário, não é populismo. É um sintoma.
E como os sintomas, importa perguntar: porquê agora, porquê assim, e porque razão tanta gente - eu incluído - pensa nisto insistentemente, mas sem o querer assumir - eu excluído.
Parte 1 - Controlo da narrativa: a comunicação social perdeu-o.
Desde sempre, a política em Portugal teve uma regra simples: apareces na televisão e nos jornais, existes. Não apareces, és ruido indesejável como uma família de ciganos à tua porta.
Piadas e provocações à parte: sempre foi um sistema fechado, previsível e confortável; quer para os partidos do arco do poder, quer para quem os comentava.
O Chega nasce numa altura em que estes meios deixaram de ter a última (e única) palavra. E isto mudou tudo.
A partir do momento em que a comunicação social perdeu a capacidade de, sozinha, moldar o que é ou não aceitável, passou da crítica ao cerco. De escrutínio a batalha.
E quando um lado só bate, hora após hora, dia após dia, mês após mês, o público começa a perguntar-se: porque é que estão tão nervosos?
É aqui que o pêndulo vira.
Todos os dias fazem por nos vender peixe, mas há dias em que também apetece uma boa costeleta.
Ao sétimo dia o estômago começa a acusar enjoo e diz ao cérebro que já era desejável comer carne para variar. E é nesta procura natural de combate ao desenjoo que surge a ida ao talho: o bicho papão das redes sociais.
Parte 2 - A comunicação social prega. A internet debate.
As pessoas não migraram para as redes sociais porque ficaram subitamente apaixonadas por debates políticos.
Migraram porque deixaram de relatar a realidade e passaram a explicá-la. Fazem-no com tom paternalista ao invés de informativo. No fundo, cansaram-se de ver e ouvir as mesmas vozes a repetir as mesmas conclusões apresentadas como factos.
As redes tem os mesmos defeitos que fora delas: há clubismo, trincheiras, péssimos arguemntos.
Mas também há contraste, confronto, contradição - ou seja, aquilo que obriga a pensar.
E é aqui que está a verdadeira ameaça: o poder da narrativa muda de mãos, quando o povo começa a pensar por conta própria.
Parte 3 - O bom, o mau, e o vilão.
A guerra deixou de ser esquerda vs direita, e passou a ser controlo vs autonomia.
Se estás à esquerda ou à direita, és catalogado. Se recusas o rótulo, és inquietante.
Nada intimida mais que o último: não se consegue prever, envergonhar, silenciar com um carimbo ideológico, e acima de tudo, não se deixa comandar. O poder não teme uma ideologia adversária ou (dita) extremista. Teme sim quem escapa às caixas onde os querem meter.
Mas esta guerra é propositadamente binária, e útil.
Reduzir tudo a dois lados tem uma vantagem estratégica: elimina nuance, acelera o julgamento, e transforma discordância em heresia. E num mundo com lados que substituem ideias, o debate morre e o ruído manda, e assim ninguém precisa responder a perguntas difíceis, basta perguntar: "és dos nossos?"
E o problema aqui nem é escolher um lado, mas sim não se permitir mudar de lado, de ideia, de pergunta.
Parte 4 - Desinformação, ou falta de alternativa à informação?
Há um país inteiro que ainda não sabe que isto está a acontecer.
Não estão em grupos, threads ou caixas de comentários, confiam na televisão quer por hábito quer por convicção. Acham que o que passa na televisão é a realidade, quando na verdade há construção.
Nem tão pouco são ingénuas, simplesmente estão formatadas pela ausência de contraste.
Se não lhes afecta, não é motivo de preocupação. Mais facilmente até se convencem que é exagero ou invenção.
A pergunta que me assola é: estarão cativos sem saber, conscientes mas indiferentes, ou só passivos até algum problema lhes bater à porta?
A verdade é esta: não é com panfletos, sermões, entrevistas ou debates sem fim que as pessoas acordam.
É quando alguém que nos é próximo diz em voz alta o que elas só pensavam em silêncio, ou quando percebem um padrão: atacar sempre o mesmo, com a mesma emoção, sem o mesmo rigor.
A mudança nunca começa pela ideologia. Começa pela dissonância. Primeiro nota-se a incongruência, só depois se começa a pensar em mudar de opinião.
Parte 5 - A revolta assente na incoerência
Décadas a alternar PS e PSD. Meio século a ver o país a arrastar-se - felizmente não testemunhei, se não a minha revolta intelectual era pior.
Reformas pela metade, escândalos arquivados, promessas recicladas, serviços a degradar... e silêncio absoluto. Civilidade, ordem, manso conforto. Bravo!
O povo português queixa-se no café, comenta, resmunga... mas quando chega a hora de votar diferente? Nada. Nem naquela do "deixa lá ver o que isto dá". Nem um passo para criar algo novo, nem um partido alternativo. Mas no clube de futebol? Ah, todo o mundo cedo a marcar a cruzinha. Prioridades. "Dá-lhes pão e circo e eles nunca se revoltarão" já dizia o outro.
E agora, milagrosamente, surge alguém disponível para incorporar e dar voz às queixas de uma forma diferente - que pelos vistos, difícil de ignorar - e que desafia o status quo, que propõe ideias novas... e saiem os ursos críticos da sua hibernação: procuram descredibiliza, ridicularizam, anulam. Não só é uma surpresa, como mais tarde poderá virar-se contra eles próprios.
Perguntas que ficam no ar: onde estavam até agora? Porque não fizeram nada? E porque só agora querem silenciar quem finalmente lhes dá voz?
A revolta que brota hoje é tardia, hipócrita e convenientemente selectiva.
Não é sobre princípios, é sobre conforto. E sabem quem vai ter de lidar com a confusão, no final? São as novas gerações.
Parte 6 - O partido Chega não é a solução, quebra a mansidão e desperta consciências
O Chega não é a solução. Nem o André Ventura. Milagres da noite para o dia? Ilusão.
E no entanto, há quem ladre diariamente, armadilhando o pensamento crítico: "não é ele que vai mudar nada, desengane-se quem pensa que é diferente".
Como se todos os outros, que governaram até agora, tivessem feito algo novo... nem num dia, nem numa noite, nem em cinquenta anos de falsa alternância.
E eis o paradoxo: este partido conseguiu abrir uma fenda na apatia crónica. Um país habituado a assistir tudo como espectador de um filme que já conhecia o final. Observava, resmungava, abanava a cabeça... mas agir? Um esforço demasiado grande para quem se habituou a dormir sobre almofadas de conformismo. Até agora.
Não há seguidismos cegos aqui. Não engulo tudo o que sai da boca de Ventura. Vejo os erros, os exageros, as falhas. Mas também tenho dois dedos de testa para reconhecer valor quando este surge, mesmo manchado de imperfeições. Valor de um gesto que sacode a poeira das estantes, que abre janelas em salas há muito fechadas e bafientas, que transforma cochilo passivos em alerta.
O mérito não está nas soluções mágicas, nem nas palavras polidas. Está em acordar o debate, em desafiar a complacência, em mostrar que a passividade tem preço. E, ainda que temperado de exagero e provocaç\ao, o efeito é inegavelmente real, profundo, impossível de ignorar.
No fim, não é culto de personalidade, nem fanatismo cego. É um choque de realidade, uma brisa gelada que obriga o país a olhar para si e perceber: talvez seja hora de parar de engolir tudo calado, antes que seja tarde de mais. E como sempre, adivinhem quem vai estar ca para herdar a conta? As novas gerações, que terão de lidar com o peso de décadas de sono confortáveis.
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Conclusão - O veredicto é teu.
O país dormia em embalo previsível: um canal dizia, outro repetia, e todos aplaudiam o déjá-vu. Até que a internet apareceu, barulhenta, cheia de ecos e contradições, e a pergunta surge "mas será mesmo que é assim?"
A política deixou de ser cores ou etiquetas. Virou sobre quem consegue pensar sem GPS ideológico, quem sacode o pó das certezas e encara a apatia com uma sobrancelha levantada.
O chega não é a solução, Ventura não é santo - por muitos crucifixos que transporte consigo e muitas idas à igreja - mas conseguiram o milagre de abrir uma fissura na nossa mansidão.
No fim, não há receitas prontas.
É sobre perceber onde repousa o poder de facto, rir um pouco do absurdo, e decidir se queremos continuar a ser espectadores ou entrar na confusão.
Escolhes continuar a assistir, ou tens coragem de te sujar no debate?
O veredicto é teu.






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